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O problema da razão prática

Desde a reabilitação da Filosofia Prática, iniciada nas décadas de 60 e 70, emblematicamente simbolizada pela obra Rehabilitierung der praktischen Philosophie[1], se coloca à reflexão filosófica a tarefa de executar uma justificação satisfatória de um saber ético geral. Tal conhecimento deverá possuir a peculiaridade de afirmar não apenas o que convém eticamente ao homem, mas de determinar o que é bom ou mau em geral para o homem. Entretanto, Aristóteles nos diz que o bom e o mau no humano nunca se dão em geral, jamais se apresentam genericamente, mas pelo contrário ocorrem sempre numa escolha prática, se mostram sempre na particularidade deste homem[2]. Deste modo, já se esboça aqui a complexidade do objeto deste saber que é a Filosofia Prática: deve prescrever o que é geralmente bom ou mau, muito embora estas qualidades éticas se apresentem sempre privadamente. Portanto, percebe-se que este empreendimento filosófico não é somente laborioso por seu próprio objeto, mas também dificílimo se ainda levarmos em conta a reflexão ética que prevaleceu nos discursos de Filosofia Prática, especialmente em certa reflexão Política, no início do século XX. Estes debates aconteciam a propósito da distinção e da incompatibilidade real defendida por alguns pensadores práticos entre descrição e prescrição dos atos éticos[3]. Caso se superasse a dificuldade mesma do objeto da Filosofia Prática, portanto, a reflexão ética haveria que justificar a aproximação entre conhecer e agir, ou ao menos deveria sustentar a razoabilidade da ação prática para além de uma mera “avaliabilidade”. Vê-se, portanto, que a tarefa de reabilitar a Filosofia Prática não é uma tarefa das mais simples.

Justamente por demandar um empreendimento de grande monta e exigir um esforço extraordinário, Hans-Georg Gadamer (1900-2002) – cuja proficiência de suas obras não nos permite classificá-lo sem mais de filósofo simples – empenhou-se em executar esta tarefa e colaborou significativamente para a reflexão da Filosofia Prática, dando a esta pesquisa rumos que não podem ser ignorados. De fato, na busca de fundar a Filosofia Prática, Gadamer aproxima de maneira bastante original dois conceitos utilizados por Aristóteles na sua Ética à Nicômaco, a saber: phrónesis e sýnesis[4]. Levando em conta a enorme competência de Gadamer no tratamento de questões de filologia, e tendo em vista que é prudente adotar uma postura otimista sempre que possível a fim de compreender os liames do pensamento do filósofo, não se imagine que esta aproximação, a primeira vista excêntrica, seja meramente casual ou inadvertida. Com efeito, algum intuito determinado o nosso autor possui ao aproximar tais conceitos, concedendo com isso caracteres compreensivos à phrónesis, e deste modo afastando-a demasiado de uma tradição dianoética da Filosofia Prática[5].

Portanto, a tarefa de uma reabilitação da Filosofia Prática elaborada por Gadamer supõe uma reflexão acerca das noções de phrónesis e sýnesis. Neste sentido, a boa compreensão da problemática proposta por Gadamer exige uma necessária abordagem destas noções assim como estas surgiram na reflexão ética, nomeadamente em Aristóteles, visto que é na referência ao Estagirita que nosso autor elabora e fundamenta a cita semelhança entre os conceitos.



[1] AA.VV., Rehabilitierung der praktischen Philosophie, citada por Hans-Georg Gadamer in: Langage et Vérité, p. 232.


[2] ARISTÓTELES, Ética à Nicômaco, VI.


[3] Esta postura ética que propugna a incomunicabilidade entre conhecer e agir é denomina contemporaneamente Lei de Hume. Seus maiores personagens são filósofos anglo-saxões da década de 40 e 50, como Stevenson, Ayer, Dewey e outros, que têm em B. Russel um arquétipo na frase: “A ética não contém afirmações verdadeiras ou falsas, mas consiste em desejos de certa espécie geral“. Religion and Science, 1936. É nítida a ascendência de M. Weber sobre tal posição ética mas não se pode negar a influência das teorias de James Mill, Stuart Mill e de Bentham, cuja marca fundamental é a descaracterização de critérios racionais para a ética, alijando-a de qualquer perspectiva argumentativa e propondo como norma ética de todas as ações, o agradável e o prazeroso.


[4] Embora os dicionários em geral equivalham os termos, pois para estes ambos significam prudência, phrónesis e sýnesis não significam pura e simplesmente uma virtude de bem deliberar em Aristóteles. phrónesis é, como se verá, um hábito sim, mas também não é redutível absolutamente a caracteres extrínsecos a razão, como à educação, ou ao bom nascimento. Já sýnesis emerge como uma faculdade, como a prudência também o é, mas diferentemente daquela, sýnesis diz uma imediatez que une as partes, algo intuitivo.


[5] Segundo o uso grego utilizado por Aristóteles e que se mantém inalterado, dianoética (dianohtikov”) refere-se à parte intelectual da alma humana. Cf. Ética à Nicômaco, I, 13, 1102 b. A aproximação entre dianoética e ética é sugerida por Enrico Berti, em As Razões de Aristóteles, p. 144s.

Fonte: OLIVEIRA, Robson. Phrónesis e Sýnesis: uma aproximação gadameriana. Synesis, v. I, p. 29-42, 2003.

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