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Catecismo da Igreja Católica e a Pena de Morte

O Papa Francisco retificou o ensinamento da igreja com respeito à doutrina da pena de morte. A ação inusitada gerou certa confusão nos fiéis sobre do que trata a mudança, como os cristãos se vinculam à declaração do Papa, que consequências têm para a fé católica essa declaração. Tentarei lançar alguma luz sobre o assunto. Antes, porém, é necessário fazer alguns apontamentos prévios.


  1. Primeiramente, a mudança trata da pena de morte, não do direito de defesa. Portanto, nada mudou quanto ao direito de defender a própria vida ou o dever de defender a vida de outrem, se indefeso, caso corram risco de morte. Também a mudança não trata do caso das guerras justas. O assunto trata apenas dos casos em que um cidadão é condenado à pena capital por um governo legitimamente constituído, após ampla defesa e  um processo regular.

  2. Pena de morte não é direito natural. Para falar francamente, não entendi quando disseram nas redes que a supressão da pena de morte pelo Papa Francisco atentava contra a lei natural. Desde quando é um direito natural decretar a morte de alguém? Não é, não. Se há um dever com relação ao outro no âmbito da vida, é justamente o contrário: Não matar, esse sim um dever inscrito no coração humano, contra o qual só se levanta em raras exceções, como a legítima defesa e a guerra, por exemplo.

  3. Alguns dizem que não há mudança na teologia moral. Se era errado ou certo no passado, deve ser errado ou certo hoje. Mas não é tão simples. Na História da Igreja encontram-se diversos episódios em que ações mudaram de  estatuto depois de terminada alguma etapa da História da Salvação: as proibições alimentares dos judeus, as exigências talares do Antigo Testamento, questões disciplinares da fé com relação à disciplina do sacramento da Eucaristia ou Confissão, muitos são os exemplos de avanços nessas áreas. É verdade que sobre o essencial, não houve mudança: assassinato é sempre assassinato. Mas no acidental, há muitas mudanças no desenvolvimento da Teologia Moral. E entendo que o assunto “pena de morte” é um aspecto do 5o. Mandamento.

  4. Admitindo, contudo, que o Papa Francisco tenha modificado algum ensinamento, e que o que é certo é certo, independente do tempo, é preciso dizer que houve uma mudança anterior a de Francisco, que foi justamente a que permitiu a pena de morte. É bom que se diga que a pena de morte, no início, não era tolerada. Nem quando o crime era hediondo. Veja, nos atos humanos há circunstâncias atenuantes e agravantes. A proximidade consanguínea é, de fato, determinação de agravante, no caso de homicídio. Por isso, mais grave é matar um parente que um estranho; pior matar a mãe que o turista que passa ao lado. Pois bem, ao assassino de Abel Deus impõe uma lei: ninguém toque em Caim. Não se trata de um homicídio qualquer, mas do Pai de todos os homicídios. E não só: um Fratricídio! Mas ainda assim, um interdito paira sobre o assassino: não matem Caim! Logo, se o que é certo, é certo; e o errado, é errado; a relativização da norma dada por Deus, lá no início, é a mudança realmente deturpadora, pois rompe com o interdito que vem dos primeiros pais. A marca de Caim é uma lei que parece corroborar a interdição à pena de morte.

  5. Sem a pena de morte não há justiça. É um erro acreditar que a pena de morte é o pagamento necessário para restituir uma outra vida tirada. Não é. Os cristãos, destinatários primários do texto do Papa, não se movem pela Lei de Talião: olho por olho e todo mundo fica cego. O código de conduta do cristão não é o proporcionalismo ético. Uma vida não se paga com outra vida. O homicida não deve morrer, pois a Marca de Caim já demonstrou-nos que os planos de Deus são outros. Além disso, o princípio da proporcionalidade, que determinava que o mal fosse pago com o mal, foi destruído na Cruz de Cristo. A regra do cristianismo não é responder o mal com o mal, uma vida pela outra, mas a quem pede o manto, dê também a túnica; ande 4km com quem pediu 2km; dê a outra face. Combatamos o mal com o bem, essa é a máxima cristã. Logo, a proibição da pena de morte não é uma afronta à virtude da justiça. Afinal, não é justo a homem tirar a vida de um outro homem, visto que só pode tirar a vida quem a dá. Pelo contrário, a exigência contumaz de aplicação de  penalidade proporcional se parece mais com vingança do que com justiça.

  6. Se defender o aborto proíbe os cristãos de apoiar certos políticos, defender a pena de morte deve afastar-nos também de quem defende essa prática? Parece que não. O aborto é um ataque especial contra a vida pois é contra alguém indefeso, sem recurso nem para gritar. A pena de morte, mesmo quando é levada a cabo sem o devido cuidado legal, dá ao réu o mínimo direito à defesa, ele tem direito de gritar, ao menos. Canonicamente, crimes ligados ao aborto tem pena automática  (latae sententiae), além de colocar o infrator em excomunhão. Considerando que o apoio à pena de morte seja pecado, não tem a malícia do aborto, não leva à excomunhão e a pena não é ferae sententiae. Ademais, quanto ao aborto, há mais de uma advertência da Congregação da Doutrina da Fé acerca da malícia intrínseca do ato. Nada ouvi ou li sobre a pena de morte. Veja, não é que tanto faz apoiar esse ou aquele candidato, independente de suas convicções. O melhor é que o candidato seja um exemplo de cristão. Mas há uma escala de males que precisa ser averiguada nesses momentos críticos. O princípio do mal menor existe e deve ser aplicado, quando as condições ocorrerem.

  7. Usou-se o caso de Dimas para demonstrar que a pena de morte leva à conversão. Bem, o argumento é de um simplismo só explicável pela paixão e pela rapidez em atacar o Papa Francisco. Nenhum exemplo, nenhum evento particular que contemple a vida humana e suas ações pode garantir que ele se repita, em situações semelhantes no futuro. E o caso do outro ladrão exemplifica justamente isso: dois homens, ambos condenados pelos mesmos crimes, sofrendo as mesmas penas, um se converte, outro não. Ora, se a condenação à morte fosse um bem indubitável para o indivíduo, os dois deveriam morrer reconciliados com Deus, o que não temos certeza. A pena de morte não leva necessariamente os condenados à refletir sobre a própria vida e escolhas. Logo, não pode ser usado como argumento para a conversão do réu. Antes, tratando-se de criminoso contumaz, melhor seria que o mantivesse vivo, certamente proibido de fazer mal a mais alguém, a fim de que a idade e a experiência lhes desse uma visão mais aberta da vida e assim fosse tocado pelo Espírito Santo. Nosso Senhor nunca deixou de ir atrás dos homens. Se aquele criminoso tivesse sobrevivido ainda mais uns dias, talvez seu fim fosse menos dramático.

  8. A pena de morte intervém no plano de Deus antecipando o que ele pensou para cada um? Sim, no sentido de que a Onisciência de Deus sabe mas não determina o homem para agir. Portanto, no caso de um réu mal julgado e condenado à morte injustamente, há a intervenção do homem na História da Salvação, fazendo Deus agir ou não agir (lembrem das Bodas de Caná: Mulher, não está na hora… mas o milagre foi feito). Veja, a ação livre do homem produziu um mal (mal moral e físico), mas não estava no plano de Deus que, por causa do mal de alguém, um seu filho morresse assim. Ora, pode acontecer desse ato mal pegar o indivíduo num momento de fé ruim. É evidente que poupar esse indivíduo da morte é dar-lhe a oportunidade de reconciliar-se com Deus e, por quê não, dar a Deus a chance de ir atrás daquela ovelha perdida, mesmo lá na prisão, muito longe do redil.

Feitas as observações, eis os textos do Catecismo da Igreja Católica, que causaram tanta discussão recentemente. Vamos a eles:Antes da Mudança

2267. A doutrina tradicional da Igreja, desde que não haja a mínima dúvida acerca da identidade e da responsabilidade do culpado, não exclui o recurso à pena de morte, se for esta a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor. Contudo, se processos não sangrentos bastarem para defender e proteger do agressor a segurança das pessoas, a autoridade deve servir-se somente desses processos, porquanto correspondem melhor às condições concretas do bem comum e são mais consentâneos com a dignidade da pessoa humana. Na verdade, nos nossos dias, devido às possibilidades de que dispõem os Estados para reprimir eficazmente o crime, tornando inofensivo quem o comete, sem com isso lhe retirar definitivamente a possibilidade de se redimir, os casos em que se torna absolutamente necessário suprimir o réu «são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes»Após a Mudança

2267. Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum. Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir. Por isso a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que «a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa»2, e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.

No início do texto antigo, percebe-se que o objetivo primeiro é determinar que a pena capital é lícita, se houver certeza da autoria e da responsabilidade do culpado, mas com uma condicional: se for a única solução possível para defender vidas humanas.

A doutrina tradicional da Igreja, desde que não haja a mínima dúvida acerca da identidade e da responsabilidade do culpado, não exclui o recurso à pena de morte, se for esta a única solução possível para defender eficazmente vidas humanas de um injusto agressor (destaque nosso).

Sem a condicional “se”, a pena capital não poderia ser aplicada, mesmo na redação antiga do § 2267. O texto diz que não se pode excluir o recurso à pena de more se for a única solução. O que faz crer que, havendo outra solução para defender eficazmente a vida humana, o uso da pena de morte está vedado.

A nova redação vai na mesma linha:

Durante muito tempo, considerou-se o recurso à pena de morte por parte da autoridade legítima, depois de um processo regular, como uma resposta adequada à gravidade de alguns delitos e um meio aceitável, ainda que extremo, para a tutela do bem comum.

O uso da pena de morte, extremo e utilizado pela autoridade legítima e depois de processo, tinha como finalidade a defesa do bem comum. Assim como na primeira redação, a nota distintiva é a defesa do cidadão do injusto agressor.

Na versão antiga, em vista da dignidade da pessoa humana, o legislador já previa o abandono da pena capital se processos incruentos bastassem para proteger as pessoas do agressor contumaz. Veja que o Catecismo afirma que é dever servir-se de meios não sangrentos, se existirem, em vista do bem comum e da dignidade do réu, do criminoso. Isso está escrito na versão antiga:

Contudo, se processos não sangrentos bastarem para defender e proteger do agressor a segurança das pessoas, a autoridade deve servir-se somente desses processos, porquanto correspondem melhor às condições concretas do bem comum e são mais consentâneos com a dignidade da pessoa humana.

Seguindo o mesmo raciocínio, a nova redação do parágrafo é mais prolixo mas chega ao mesmo ponto, afirmando que os avanços técnicos garantem a causa final, que é a defesa do cidadão, sem tirar a possibilidade de conversão do agressor:

Hoje vai-se tornando cada vez mais viva a consciência de que a dignidade da pessoa não se perde, mesmo depois de ter cometido crimes gravíssimos. Além disso, difundiu-se uma nova compreensão do sentido das sanções penais por parte do Estado. Por fim, foram desenvolvidos sistemas de detenção mais eficazes, que garantem a indispensável defesa dos cidadãos sem, ao mesmo tempo, tirar definitivamente ao réu a possibilidade de se redimir.

De outro modo, a chegada de novos processos  são capazes de garantir a tutela da sociedade sem atentar contra a vida do criminoso, o que é um evidente avanço em relação à dignidade da pessoa humana.

E finalmente, a versão antiga termina do parágrafo, afirmando que o uso da pena capital está cada vez mais raro, diminuindo realmente os casos em que pareça necessário:

Na verdade, nos nossos dias, devido às possibilidades de que dispõem os Estados para reprimir eficazmente o crime, tornando inofensivo quem o comete, sem com isso lhe retirar definitivamente a possibilidade de se redimir, os casos em que se torna absolutamente necessário suprimir o réu «são já muito raros, se não mesmo praticamente inexistentes»

Na versão retificada sob o governo do Papa Francisco, a conclusão do parágrafo faz um resumo do ponto:

Por isso a Igreja ensina, à luz do Evangelho, que «a pena de morte é inadmissível, porque atenta contra a inviolabilidade e dignidade da pessoa», e empenha-se com determinação a favor da sua abolição em todo o mundo.

Por isso, quer dizer, por que há meios de tutelar o bem comum sem a morte de um ser humano; por que a dignidade humana precisa ser defendida incondicionalmente e, nesses dias, há condições técnicas de fazê-lo se o Estado quiser; por que convém deixar os criminosos vivos para tentarem se redimir dos seus crimes, claro, sem pôr em risco mais ninguém, por isso tudo a pena de morte é inadmissível. A inadmissibilidade da execução da pena de morte, à luz dessa nova redação, deriva de todos esses condicionamentos, de todas essas circunstâncias.

Como se viu, antes de a equipe do Papa Francisco dar nova redação ao parágrafo 2267, a pena de morte só era admissível, se não houvesse outro modo de deter o criminoso sem derramamento de sangue. Se fosse possível parar seu rastro de sangue com métodos alternativos incruentos, o Catecismo de São João Paulo II dizia que era dever moral assim fazê-lo. A nova redação diz o mesmo, mas de forma negativa: a pena de morte não é admitida, a não ser que as condições não sejam atendidas, a saber: a impossibilidade de tutelar o povo sem derramamento de sangue, a eficaz detenção do criminoso, sem riscos para a população são elementos que, se não forem atendidos, tornam a inadmissibilidade inaplicável.

Como disse para uns amigos, penso que todo esse barulho é desnecessário. Afinal, nada mudou na doutrina, a não ser a ênfase no modo apofático de expressão do princípio da pena de morte, que continua sendo inadmissível como antes, conquanto não se estabeleçam as condições necessárias para tal.

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